Do clamor do povo à fumaça branca: como a Igreja escolhe o papa
A eleição de um papa é um dos eventos mais solenes e emblemáticos da Igreja Católica. Mas nem sempre foi como conhecemos hoje — com cardeais vestidos de vermelho reunidos na Capela Sistina, sob afrescos renascentistas, aguardando que uma fumaça branca anuncie ao mundo: Habemus Papam. A história desse processo é longa, cheia de reviravoltas, pressões e decisões inspiradas pela fé.
Além disso, qual o papel do Espírito Santo nessa escolha? Vejamos.
Nos primeiros séculos: aclamação e comunidade
Durante os primeiros séculos do cristianismo, a escolha do bispo de Roma era feita pelo clero local em sintonia com o povo da cidade. Tratava-se de uma eleição viva e comunitária, marcada pela aclamação pública. O espírito era o da Igreja nascente: simples, direto, sem fumaça nem segredo.
O império entra em cena
Com o fim das perseguições aos cristãos após o Édito de Milão (313), o imperador Constantino inaugurou uma nova era. A Igreja passou a gozar de liberdade e prestígio — mas também ficou mais exposta à política imperial. A partir de Justiniano, tornou-se costume comunicar ao imperador do Oriente o nome do papa eleito e aguardar sua aprovação.
Séculos de interferência e conflito
Entre os séculos VIII e X, o papado passou a exercer não só autoridade espiritual, mas também poder temporal sobre vastos territórios na Península Itálica. Isso atraiu a atenção e a cobiça de famílias nobres e impérios estrangeiros. O cargo de papa era disputado como um trono. Nos séculos IX e X, a eleição, frequentemente, deixava de ser espiritual para tornar-se palco de jogos políticos. No Século XI, os imperadores germânicos algumas vezes impuseram seus candidatos - atpe com bons resultados, como no caso de Leão IX.
A reforma de 1059: nasce o colégio cardinalício como conhecemos
Cansada das interferências e das disputas, a Igreja iniciou uma série de reformas. Em 1059, o Papa Nicolau II publicou o decreto In Nomine Domini, transferindo oficialmente a responsabilidade pela eleição papal ao colégio dos cardeais, que então era formado por um pequeno grupo de clérigos romanos e bispos vizinhos. A intenção era blindar a escolha papal de pressões externas.
Viterbo, 1271: três anos sem papa e um telhado retirado
Um dos episódios mais notórios da história dos conclaves ocorreu em 1271. Após três anos de impasse, os cardeais reunidos na catedral de Viterbo não chegavam a um acordo. Cansada da demora, a população local trancou os purpurados na igreja, retirou o telhado para expô-los ao tempo e reduziu drasticamente sua alimentação. A pressão funcionou: poucos dias depois, foi eleito o Papa Gregório X.
Ubi Periculum: o conclave como conhecemos nasce
No Concílio de Lyon II (1274), Gregório X institucionalizou as medidas de Viterbo ao promulgar a constituição Ubi Periculum, que criou o sistema do conclave:
• Isolamento total dos cardeais durante a eleição;
• Proibição de comunicação externa;
• Regime de austeridade progressiva (uma refeição por dia após três dias sem eleição; apenas pão, água e vinho após cinco).
Daí vem o termo conclave, do latim cum clave — “com chave”: os cardeais deveriam permanecer literalmente trancados até chegar a um consenso.
A Capela Sistina: arte e espírito no coração da eleição
A partir do fim do século XV, os conclaves passaram a ocorrer, com maior frequência, na Capela Sistina. Desde 1878, todos foram realizados ali.
A Capela Sistina é muito mais que um cenário: é um santuário teológico em forma de arte. Sob os olhos do Juízo Final de Michelangelo e rodeados pelos episódios bíblicos do Gênesis, os cardeais votam em silêncio, buscando a inspiração do Espírito Santo. A liturgia da imagem os envolve: do “faça-se a luz” ao “fim dos tempos”, é como se toda a história da salvação os interpelasse.
A fumaça branca: o sinal que o mundo inteiro espera
Do fogareiro aceso ao lado da Capela Sistina, saem duas possíveis mensagens:
• Fumaça preta (fumata nera): sem consenso.
• Fumaça branca (fumata bianca): um novo papa foi escolhido.
A fumaça é produzida por uma mistura cuidadosamente preparada: cartelas dos votos queimados, substâncias químicas seguras e um sistema moderno de ventilação para garantir a cor correta — e evitar enganos, como já ocorreu em séculos passados.
As regras atuais
Hoje, o conclave é regulado pela Constituição Apostólica Universi Dominici Gregis (1996), promulgada por São João Paulo II e reformada por Bento XVI e Francisco. Participam apenas cardeais com menos de 80 anos de idade no dia da morte do papa. Para a eleição, exige-se uma maioria de dois terços dos votos. Com 135 cardeais eleitores, por exemplo, são necessários 90 votos para eleger um novo sucessor de Pedro.
Qual o papel do Espírito Santo na escolha do papa?
Em 1998, o então Cardeal Joseph Ratzinger (futuro Papa Bento XVI) concedeu uma entrevista memorável à TV alemã da Baviera em que abordou, com notável sinceridade teológica, uma questão que muitos fiéis se perguntam: o Espírito Santo realmente escolhe o Papa?
Com seu realismo teológico, Ratzinger explicou: “Eu não diria isso, no sentido de que é o Espírito Santo que o escolhe. Eu diria que o Espírito Santo não assume exatamente o controle da questão, mas, sendo o bom educador que é, ele nos deixa muito espaço, muita liberdade, sem nos abandonar totalmente.”
Essa resposta equilibrada demonstra a maturidade de um teólogo que reconhece tanto a ação divina quanto a liberdade humana nos processos da Igreja. Como ele mesmo observou, “existem exemplos demais de Papas que evidentemente o Espírito Santo não teria escolhido”.
Ratzinger completou seu pensamento esclarecendo que a função do Espírito Santo deveria ser entendida “Em um sentido muito mais elástico, não de que ele dita o candidato em quem se deve votar. Provavelmente, a única garantia que oferece é que a coisa não pode ser totalmente arruinada.”
Esta reflexão nos convida a compreender a Igreja como uma realidade tanto divina quanto humana, onde Deus respeita nossa liberdade enquanto sutilmente guia a história para Seus propósitos.